Keblinger

Blog da Tia Maryane

terça-feira, 22 de maio de 2012

Uma memoria entesourada no meu coraçao :CEBS



  Quando cheguei na escola popular, em abril  de 1987, mergulhei em um novo mundo, que aquele encontro me ofereceu, me envolvi totalmente, por inteira em um novo modo de viver,de rezar e de lutar.  Inicialmente fui convidada por Irmã Siebra  e Pe Machado para dar  umas  aulas, sobre História do Brasil: Brasil colônia , Brasil império e Brasil República.Eu era  jovem, tinha 7 ano de casada, comentavam que eu era  uma ótima professora de História; lá em Massapê,em minha cidade natal, eu já lecionava embora muito nova, em dois colégios particulares,no Educandário nossa senhora do Carmo e no centro Educacional Massapeense e 1977 ganhei um contrato do estado para ser professora no colégio Adauto Bezerra,mas meu pai era do PMDB,partido contra o do Prefeito ,e acabei sendo prejudicada me deram apenas 70 horas aulas,mas isso é um outro assunto,como  estava falando,eu tinha 11 anos de experiência e estava ali  no CEPRI“ me achando...”dar aulas para os trabalhadores do campo, era muito fácil ,eu pensava que sabia muito, que tinha um vasto conhecimento em História pois iniciei minha carreira de professora de história antes mesmo de me formar.Cheguei no CEPRI as 8 da manhã ,era um sábado. Fui apresentada ,para a turma  eu também me apresentei. Fiz uma dinâmica com os  alunos,eram em sua maioria pessoas bem mais velha que eu,outras tinham a minha idade e poucas eram mais novas do que eu...lembro que passei toda manhã explanando minha aula.Eu mesma me avaliando, achei que fui ótima . Não tinha idéia  que eu  era totalmente  analfabeta política. Foi ali que me dei conta disso...Os participantes da escola popular eram pessoas simples,trabalhadores sindicalizados,estudavam política ,discutiam problemas sociais, eram sábios, animados,cantavam ,falavam,debatiam assuntos polêmicos da conjuntura política, tocavam violão,pandeiro, sanfona. Enfim eram ótimos. Quando terminei,fui aplaudida e foi ai então que Pe Machado  levantou  de sua cadeira ,para dar continuidade  o programa da escola popular, era sua vez de participar  no encontro, e iniciou sua tarefa   puxando uma música, que  logo foi acompanhada por todos:  Se  o  boi soubesse da força que tem não puxava carroça e a abelha, da dor da picada não roubavam seu mel, e a terra era terra e o céu era o céu como era bom se toda semente crescesse e a razão pudesse sempre dominar e essa paz  fosse que nem uma criança andasse solta feito a noite de luar se na inveja colocasse um cabresto Na ambição colocasse um cortador na violência uma espora amolada deixasse  a  rédea Solta na mão do amor... Em seguida  o  Pe Machado explicou diplomáticamente dos dois jeitos de  se  contar a História : o jeito do mito e jeito da lógica...   Fiquei  curiosa, atenta  aquele  assunto ali abordado.E foi então que percebi, que meu jeito de contar História  era  o jeito da lógica: a história bem arrumadinha do jeito que está escrita nos livros ,a maneira que os formados contam. Dom Fragoso era bispo de Crateús,  um bispo, tão bom,tão humano,inteligente, culto, que pela sua luta pelos pobres em busca do reino de DEUS ,ficou conhecido como o profeta dos pobres,pois vivia a fé, o espaço político, o espaço das relações humanas em um novo jeito de ser igreja: cebs, povo que luta,que se organiza,buscando libertação.Pessoas   que acreditam ser esta a proposta do movimento de Jesus, o projeto do Reino aqui na terra;Dom Fragoso  estava presente no encontro e na oportunidade em que me acolheu  fez o seguinte comentário: Maryane,como você gosta muito do que faz, nós precisamos muito em nosso meio de uma professora como você.Venha engrossar as fileiras dos que lutam por justiça venha  nos ajudar.Que DEUS te der juízo.Pe machado também falou, venha Maryane participar das comunidades. conhecer o mundo dos trabalhadores.Venha lutar por justiça ,paz... Fique aqui ,participe da escola popular,você vai   gostar  muito, de conhecer este novo jeito de ser  Igreja. Nós vamos falar sobre conjuntura política,luta  e organização e é muito bom para você que é uma professora de história. Em seguida irmã Siebra me apresentou a umas pessoas  que estavam ao meu  lado :Chico Belo, Zequinha Moreira, Luiz Antonio,Joaquim Gaspar,Macedo e disse: ‘eles fazem parte de uma pequena equipe dos participantes da pastoral dos trabalhadores. Eles vão lhe ensinar sua tarefa na escola  coloque sua profissão  a serviço dos oprimidos. A serviço do reino.’E ali fiquei participando pois logo me empolguei,  me enturmei,e me conscientizei...Aquele encontro de trabalhadores era muito bom, muito rico. Foi dessa equipe que  comecei a entrar no mundo dos trabalhadores sem terra explorados e logo me engajei  nos movimentos das cebs. As CEBs tinha um compromisso político, mas a partir da fé cristã.  A  partir  daí,  passei  a  me  interessar  por  política, por conjuntura política. Nas cebs a participação e a discussão dos problemas é em forma de assembléia. Os representantes das Cebs encontram-se periodicamente para celebrar e avaliar sua caminhada.Sempre com um olhar crítico para a realidade.Ao  buscar informações  sobre  trabalho exploração,  ideologia dos oprimidos , ideologia do opressor, passei ler livros de Leonardo Boff, Marx e livros de história com uma visão diferente, cartilhas políticas,e muitos outros.Comecei a apreciar e a ouvir outros tipos de músicas... Aprendi  tantas coisas,que fizeram  de mim uma mulher mais completa,aprendi a lutar,a celebrar , a refletir ,aprendi a amar e que meu nome é mulher. Como aprendi  com Pe machado,com os trbalhadores,,como aprendi  nos movimentos populares,como aprendi nas cebs...Fui coordenadora da CPT ,( comissão da pastoral da terra),coordenei a Pastoral das mulheres.fui coordenadora da pastoral da família.Participei da pastoral indígena com a ajuda da irmã  Margarette, uma  missionária Belga que lutava para reorganizar os índios da região.Fui presidente do PT. Participava das celebrações...aprendi as
várias formas de rezar.                                     


                     

      Revolucionei minha vida,da minha família,meu lar.No colégio onde trabalhava  minha postura, mudou  me dediquei a estudar política e juntar com História ,minhas aulas mudaram.Minhas colegas de trabalho me rejeitaram.A diretora me chamava o tempo todo a atenção .Minhas atitudes incomodavam  a todos. Foi difícil... Me dediquei  quase que obsessivamente nas atividades de organização política do movimento dos  trabalhadores,mas irmã Siebra me ajudava .Como psicóloga,como freira,como religiosa,como educadora, grande mulher forte decidida ,sábia. Qualquer assunto ,quer   Filosofia, quer da Sociologia, quer  Economia, Política, quer na História ,ela me orientava e me ensinava.Depois chegou Pe.Geu e irmã Jacinta...meu DEUS ,a pequena notável.Eram radicais ao extremo ,fazia estudos bíblicos fortíssimos.Tecia fortes críticas as igrejas católicas que ñ tivesse opção  pelos pobres.Os sermões eram lindos...Eu tinha uma Sorveteria e as vezes eu perdia algum encontro ( isso era muito raro).Ela ia me buscar.Lembro-me dela   chegando  no meu comércio  falando :Maryane vendida por um sorvete...grande admiradora de dom Fragoso e quem ñ era? Grande seguidor de Jesus.Costumava dizer quando fazia estudos bíblicos que nós tínhamos que ter um olho na bíblia e outro na realidade.Todas as vezes que celebrava gostava de cantar: eu vim para que todos tenham vida,que todos tenham vida plenamente...ficou conhecido como profeta dos pobres.Com Dom Fragoso a  Diocese  de Crateús assumiu a responsabilidade de lutar para que os Cristãos tivessem duas pernas sãs e articuladas: a perna da Experiência de Deus e a perna do combate pela Justiça. Esta opção trouxe tensões e afastamentos dolorosos.Muita gente se afastava da igreja,diziam que religião ñ tinha nada a ver com política.Os ricos se afastavam da igreja,porque o evangelho pegava nos pés dos poderosos.Toda equipe paroquial era antipatizada. Pe Géu e Pe. Machado ,tinham uns sermões lindos radicais.Todos 1º de maio a missa era dedicada aos trabalhadores do campo.No altar, tudo era vermelho,a toalha ,e nós ajudantes todos de blusas vermelhas ,simbolizando luta,sangue derramado pelos mártires.As músicas eram escolhidas  logo na preparação da missa:canto de entrada "Venham todos, cantemos um canto que nasce da terra, / canto novo de paz e esperança, em tempos de guerra./ Neste instante há inocentes tombando nas mãos de tiranos./ Tomar terra, ter lucro, matando: são esses seus planos. Eis o tempo de graça, eis o dia da libertação! / De cabeças erguidas, de braços unidos, Irmãos! / Haveremos de ver qualquer dia, chegando a vitória,/ O povo nas ruas, fazendo a história, Crianças sorrindo em toda a nação!" No ofertório  cantávamos: O ofertório do trabalhador:  Eu  te oferto Senhor,  nesta  ceia   a  luta  do dia-a-dia, toda energia que vem do suor. Eu te oferto, Senhor, meu corpo inteiro.     Trago aqui sobre  meus braços o vivo entusiasmo do meu coração... cantos lindos que nos refletir .O salmo de agradecimento : “Tu és o Deus dos pequenos, o Deus humano e sofrido, o Deus de mãos calejadas, o Deus de rosto curtido. Por isso te falo eu, como te fala meu povo.”  Agradeço a Deus todos os dias por ter sido descoberta pela Irmã Siebra,pelo Pe Machado ,e pela mulher,professora politizada guerreira que sou hoje. Agradeço por ter participado dessa equipe maravilhosa .Sou uma privilegiada por DEUS.Como dizia dom Fragoso: "uma mulher, um homem, cresce quando DÁ DE SI, não quando estendem a mão para receber"                                                                 

 

Em 1989 ,no centenário da República ,ano de eleição.Sem medo de ser feliz,todos trabalhadores organizados lutavam pela eleição de LULA. Três eram os principais candidatos deste tão almejado pleito: Fernando Collor de Mello, o renovador do conservadorismo, Luís Inácio Lula da Silva, o candidato das massas,representante dos trabalhadores e era o nosso preferido, e Leonel Brizola, que era o favorito da elite intelectual, mas fomos duramente surpreendido após a apuração. Nos dias 15 e 16 de novembro, assim, o Brasil votou e levou ao segundo e sofrido turno, Lula e Collor, abrindo uma segunda campanha eleitoral emocionante  angustiante e imprevisível.Fomos a luta,meus irmãos trabalhadores do campo,da cidade,toda militância,tentando conscientizar um povo cego,surdo e mudo.como eu até fiz uma paródia, que saiu  assim, na linguagem popular:compadre tu ta vendo o que eu to vendo,compadre tu tará com a vista escura tem candidato no Brasil de todo jeito,mas pra tu votar direito tem que votar no Lula.E assim sonhávamos com a vitória do nosso Lula,a quem os tolos chamavam de sapo barbudo.Fui perseguida no emprego,diziam que eu estava ficando doida.Eu só tinha 70 hora aula,todos ganhavam um aditivo menos eu. Como sofri. Mas fiquei firme apaixonada pela luta,por LULA. A esperança era muito forte.Meus filhos tinham uma camiseta :estou crescendo junto com o PT,a  minha camiseta era “Companheiro presidente.Nos comícios buscávamos criatividades,o deputado João Alfredo,marcava presença, levava com ele artistas com  bonecos,falantes,cantores, Zé Vicente,e outros. Eu,Zequinha Moreira, Furi,Macedo, colocávamos nossos filhos  para se apresentar nos comícios e cada um se apresentava:minha mãe é professora e vota no Lula,outro já dizia ,meu pai é bancário e vota no Lula ,e o outro repetia meu pai agricultor e vota no Lula.Foi grande a peleja.Todas as noites visitávamos uma comunidade e fazíamos uma reunião .As reuniões eram animadas,mesmo só  com a presença dos trabalhadores e da equipe paroquial.terminavamos nossas reuniões cantando : De repente nossa vista clareou! Clareou! Clareou!  E descobrimos que o pobre tem valor. Tem valor! Tem valor!
. Nós descobrimos o valor da união, que é arma poderosa, e derruba até dragão. E já sabemos que a riqueza do patrão, e o poder dos governantes, passa pela nossa mão.
 Nós descobrimos que a seca no Nordeste, que a fome e que a peste, não é culpa de Deus Pai, a grande culpa é de quem manda no país, fazendo o povo infeliz, deste jeito é que não vai. O que nós vemos é deputado e senador, militar e jogador, recebendo milhões. Enquanto isso o povo trabalhador, derramando seu suor, tem que viver de tostões. 
 Lula veio a Crateús...Como foi bom.Era a caravana da cidadania.Um sonho realizado,conhecer o LULA ...abraça-lo. Como foi marcante em minha vida .Como eu era a presidente do PT em Ipueiras pude jantar com ele,conversamos,tiramos fotos...uma voz só entoava:  Passa o  tempo e tanta gente a trabalhar De  repente essa clareza pra votar . Quem  sempre foi sincero e confiar . Sem medo  de ser feliz, quero ver chegar ...
Lula  lá, brilha uma estrela.
Lula  lá, cresce a esperança
Lula  lá, o Brasil criança
Na  alegria de se abraçar
Lula  lá, com sinceridade
Lula lá  com toda certeza
Pra  você, meu  primeiro voto
Pra  fazer brilhar nossa estrela
Lulá lá  é a gente junto
Lula lá  valeu a espera
Lula  lá, meu primeiro voto
Pra  fazer brilhar nossa estrela ...
A imprensa, a  GLOBO apoiava Collor,jovem, metido a bonito,caçador de marajás, o arrojado candidato Collor, que se vestia com roupas de esportista trazia em seus discursos e propostas o neoliberalismo e a promessa de renovação. Lula, o sindicalista,pobre,analfabeto (na visão dos poderosos) tinha o apoio de Brizola mas igualmente a antipatia da classe média ,  achavam que o PT era comunista. No fim do ano, a resposta foi clara e perversa. Após recuperar sua cidadania, garantida pela Constituição de 1988, o eleitorado brasileiro elegia Collor Presidente da República.Foi tudo muito triste,para quem queria um Brasil descente.Sofremos muito...eu sofri muito.Tanta humilhaçao O povo sem consciência política,estavam nas ruas,comemorando a    derrota do povo.E na cegueira zombavam,soltavam fogos na minha casa ,na casa paroquial.Os trabalhadores sofreram.Mas logo iniciamos a luta...Lula montou um governo paralelo,era a esperança renascendo...
 Com base na viva experiência que vivi nas comunidades eclesiais de base (CEBs),que  possibilitou também para mim um despertar de uma dignidade até então escondida,guardada. Uma experiência vivida como enriquecimento pessoal. Juntamente com a afirmação de minha dignidade pessoal que foi um presente de DEUS, Foram inúmeros os desafios assumidos ao longo de minha aprendizagem, no compromisso com o processo libertador dentro das cebs, como nos programas de Rádio que aprendi a fazer,nos programas das Ave Maria ,as 6 da tarde,eu Pedro, Zé Aristides,Beta,Chiquinha,Diomar. O compromisso com o outro... o dom da autocomunicação de Deus, a graça de uma amizade  verdadeira que enche de gratuidade a nossa vida. Faz-nos ver como um dom, nossos encontros com os outros homens, nossos afetos,as discussões, tudo o que acontecia nos encontros das CEBS. Isso para mim é abertura ao dom gratuito de Deus que despoja o militante, desaloja-o de seu egoísmo e arrogância e potencializa de gratuidade o seu amor aos outros.




Um dia desse ,fui a Tamboril ,ensinar pela UVA ,e me surpreendi com Irmã Siebra,que foi me visitar,na sala de aula e senti o orgulho nos olhos dela, quando ela falou para  de alunos: Maryane é uma professora das Cebs.Do meio popular... Fiquei hospedada na casa paroquial  de Tamboril.Minha família do coração. Qualquer momentos com estas pessoas é muito rico em conhecimeto. É como ler um livro.

Termino  esta história do jeito que eu me apresentava nas reuniões das cebs: Meu nome é Maryane Andrade ,a melhor coisa que já fiz foi entrar nas comunidades.